sexta-feira, 9 de março de 2012

O eleito by Ricardo Gondim

               Às vezes, querendo isolar-me e meditar, caminho por alamedas de antigos cemitérios. Reconheço a excentricidade. Mas não há nada mórbido ou sinistro em mim. Ali, diante da mais crua realidade, sou colocado cara a cara com a vida, sem evitar a finitude dos meus anos. Bom lugar para repensar prioridades.
               Nessas andanças, vejo sepulcros antigos, semidestruídos, e imagino o que deve ter acontecido àquela família para deixar o mato tomar conta do que já foi um lugar sagrado. Procuro ler as placas gravadas em granito que se esfarelam. Divago sobre nomes moldados no bronze, que agora se apagam. Ali não há referência ao que viveram ou sofreram. São apenas nomes, mera conjunção de apelidos que identificam uma pessoa condenada a sumir.
                No cemitério, acordo para o desejo de não ser esquecido. Todos sofremos com a ideia de não passarmos de mais um no oceano humano. Choramos no dia em que a luz nos encandeou pela primeira vez. Quando nosso grito atraiu a atenção dos que assistiram ao parto, começamos a acreditar que nos tornamos o centro do universo. A praça central da Galáxia passa a ser o lugar onde estivermos. Do peito que nos alimentou, sugamos mais que comida, nos alimentamos da autoestima que nos deixa convictos: o universo existe por nossa causa.
Daí, gastamos parte da existência a imaginar que deve existir algum tipo de eleição que nos distingue. Fantasiamos haver alguma lista com os especiais. Nos iludimos, sonhando que a confluência dos astros, as rodas do destino ou os olhos de Deus nos singularizam. Fazemos de nossa história o eixo do mundo. E sempre que alguma coisa nos suceder, suspeitamos: os vetores das estrelas se encaixaram para que algum milagre nos alcançasse.
            O conceito de eleição está presente tanto nas mitologias como nas narrativas bíblicas. Narciso foi galardoado com beleza. O sacrifício de Abel foi aceito e o de Caim, rejeitado. Jacó, a despeito de sua falta de ética, ganhou a primogenitura – Esaú acabou descartado. Samuel marcou um x nas costas de Davi como o estimado de Javé. Além dos textos religiosos, a história também esteve repleta de poetas, literatos, cientistas e políticos que acreditaram na ideia de que Deus, a vida, o destino ou qualquer outra força os predestinou. Eles não se viam cotidianos, banais, ordinários. Pelo contrário, acharam que os outros mortais deviam se sujeitar aos códigos que escreveram.
             Em Crime e Castigo, Dostoievski separa a humanidade em ordinários e extraordinários. Os extraordinários seriam homens e mulheres que ganham o direito de fazer e acontecer na história. Eles, contudo, não sofrem as penas que os outros estão sujeitos. Só os comuns precisam agir dentro da lei; obedecem ao superego (superego é por minha conta – tal conceito não existia nos tempos de Dostoievski); não podem deixar de moldar-se às exigências morais do tempo em que vivem. Aos eleitos, predestinados, escolhidos, ungidos, a lei sempre abre enormes exceções. Os insignes podem tudo. Logicamente o autor russo mostrou o absurdo dessa lógica e como ela foi responsável por inúmeras vexações.
Lutamos desesperadamente para não nos vermos reduzidos a uma placa corroída em algum cemitério. Religiosos sistematizam teologias para ensinar que, mesmo na hostilidade da vida, Deus tem sua casta. Esses, custe o que custar, desfrutarão as delícias infindáveis do Paraíso. A indústria do entretenimento também escolhe reis e rainhas. Não valem para os ídolos da música, futebol ou cinema as mesmas cercas impostas às massas. Políticos se sentem triplamente eleitos: O Eterno os guindou à posição de mando, o povo homologou a providência divina e a Fortuna os brindou com benesses.
                Acreditar-se eleito é maldição – em qualquer circunstância. Os eleitos de Deus se condenam à soberba – e empáfia antecipa a queda. Os ungidos sociais não têm como evitar olhar os excluídos com pena, de cima para baixo. Os afilhados do sistema econômico acabam se alienando da simplicidade – onde a vida realmente acontece. Não há nada mais irritante do que conviver com a vaidade de quem se acha dono de uma inteligência acima da média.
Os maiores carniceiros da história se viram eleitos. Enquanto o verdadeiro Ungido de Deus abriu mão da prerrogativa de ser único para irmanar-se a escravos, pobres e destituídos. Todo e qualquer sistema que rodopia em torno de “raça eleita”, de “povo especial” ou de “cultura sagrada” se tornará opressor. As barreiras que separam homens de mulheres, senhores de escravos, judeus de gentios, pobres de ricos, merecem ser implodidas.
             O universo não se expande seletivamente. Existe contingência. Acaso e aleatoriedade esvaziam a percepção de necessidade cármica. Na narrativa bíblica, Deus faz com que sol e chuva venham, e não faz acepção de pessoas. A graça divina não privilegia, seu amor não particulariza e sua misericórdia despreza causa e efeito. Para os que acreditam no destino, convém lembrar: ele é cego, incapaz de nomear favoritos. E para os que seguem o zodíaco: a confluência astral atinge de baciada, sem distinguir quem é quem entre os que chegam ao mundo naquele mesmo instante.
               Religião tem o dever de divulgar o fim do individualismo, do egocentrismo, do personalismo. Filosofia não pode deixar de propagar a irmandade das nações. E para os que lutam na política, vale insistir: não há ética mais nobre que diminuir a brecha entre apaniguados e desprezados.
                Querer fazer-se predileto é apequenar-se. Ambicionar ascender é cair. Cobiçar exceder ao restante da humanidade é minguar. Todo ufanista é pobre. Mal percebe que em um futuro não muito distante, algum caminhante passará por sua cova e não vai notar que ali jaz um predestinado – que imaginava trazer o rei na barriga.

                Soli Deo Gloria


sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

O maior inimigo de Jesus é o Cristianismo by Augustus Nicodemus Lopes

Li esta frase hoje no Facebook. O problema dela é que não define nem Jesus e nem Cristianismo. Existem muitas concepções de Jesus e mais ainda do Cristianismo. Assim, a frase pode significar várias coisas para diferentes pessoas. Por exemplo.
Se o autor for um desigrejado, daquele tipo que quer Jesus mas não quer a igreja, ele deve entender, ao que parece, que Jesus era uma espécie de líder informal de um grupo desorganizado de pescadores, grupo este que após a sua morte se multiplicou em outros grupos que se encontravam em qualquer lugar, sem liderança, sem estrutura alguma, onde as coisas aconteciam sem planejamento e sem estrutura, ao sabor do "Espírito", onde não havia normas, críticas e o amor predominava. E Cristinianismo, para ele, deve ser uma religião que deturpou completamente este grupo informal de andarilhos, pois construiu templos, instituiu ofícios, estruturou liturgias, organizou-se hierarquicamente, criou credos doutrinários e confissões de fé, estabeleceu a disciplina eclesiástica e criou normas. E ao fazer isto, desviou-se de Jesus e de sua mensagem simples. E por usar o nome de Jesus, sendo uma religião que nada tem a ver com ele, se torna seu pior inimigo.   
O problema com esta conceituação é que o desigrejado parece não conhecer direito nem Jesus e nem o Cristianismo histórico. Pois Jesus tinha muito pouco de informal na organização de seus discípulos e o Cristianismo nem sempre fez de sua estrutura e organização um fim em si mesmas.   
Se o autor for um liberal, daquele tipo que faz a diferença entre o Jesus da história e o Cristo da fé, Jesus era um reformador judeu, à semelhança dos antigos profetas, que queria reformar o judaismo de seus dias e restabelecer a piedade da Torá, perdida no período dos Macabeus. Quem fundou o Cristianismo foi um de seus discípulos, um judeu chamado Saulo de Tarso, que tomou alguns conceitos ensinados por Jesus, bem como suas próprias interpretações da pessoa de Jesus, e os reformulou e adaptou a conceitos que ele já tinha antes, oriundos das religiões gregas e do gnosticismo. Portanto, o fundador do Cristianismo é Paulo e esta religião é diferente e distinta daquilo que Jesus ensinou. Ao criar o Cristianismo do Cristo da fé Paulo o tornou no maior inimigo do Jesus da história.
O problema do liberal é que ele rejeita o quadro que os Evangelhos nos dão de Jesus e também a autoria paulina da maioria das cartas que trazem o nome de Paulo. Ele reconstrói o cenário do cristianismo primitivo a partir das religiões pagãs, do gnosticismo e dos evangelhos apócrifos.
Creio que os Evangelhos nos deixam claro que Jesus passou aos seus discipulos determinadas instruções que, para serem seguidas, exigiriam alguma medida de organização, estruturação, hierarquia e formalização. Assim, a Igreja cristã, seguindo as orientações de Jesus, já nasceu estruturada e organizada. Eu não me refiro a templos, organistas, liturgia fixa, ou coisa do gênero. É claro que estas coisas foram acrescentadas ao longo do tempo. O que eu quero dizer é que, de acordo com o livro de Atos e as cartas dos apóstolos a igreja cristã tinha liderança, confissões, hierarquia, ofícios, e dois sacramentos ou ordenanças (ceia e batismo) além do exercício da disciplina. Estas coisas configuram uma organização, ou um organismo estruturado, que veio a ter o nome de Cristianismo. Ou seja, não era uma fraternidade informal que se encontrava para bater papo sobre coisas espirituais. Portanto, não se pode ser contra o Cristianismo somente porque é uma religião organizada.
Concordo que existem regras, liturgias e praxis no Cristianismo que são humanas e desnecessárias, mas isto não quer dizer que não existam regras, normas, e um grau de organização que foram determinados por Deus para a Igreja. Pensar que a Igreja de Cristo não tem um mínimo de organização, regras e normas é anarquia eclesiástica.
O Cristianismo só é o maior inimigo de Jesus quando deixa de professá-lo como Senhor e Salvador, quando nega sua morte vicária na cruz pelos nossos pecados, quando rejeita sua ressurreição e sua vinda, quando usa seu nome para arrecadar dinheiro para enriquecimento pessoal ou para promoção da própria glória, se seculariza, se mundaniza e deixa de ser sal e luz. É uma ignorância profunda passar uma condenação generalizada sobre todos os cristãos de serem inimigos de Jesus.       
Seria bom saber se o autor da frase se considera amigo de Jesus, e por que.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Deus no octógono?



Sou fã de futebol. Não desse futebol abrasileirado que o resultado é definido não pela competência dos jogadores, mas pelas cartas na mesa dos grandes cartolas e a cara de pau de jogadores artistas. Amo o futebol espanhol e em particular o time do Barcelona. Admira-me a correria de Daniel Alves, a excelência do futebol de Xavi e o que dizer do jogador três vezes melhor do mundo com apenas 24 anos?
Ontem tinha barça na tela às 19 horas. Enquanto tentava localizar o canal do grande jogo na TV online. Acertei, sem querer, o canal do UFC. No momento estava entrando no octógono o brasileiro Charles de Oliveira, ao som de uma música evangélica. Canção intitulada de ‘Campeão Vencedor’ de Jamily. Após uma finalização no primeiro round, Oliveira saiu cantando essa canção e louvando a Deus por mais um vitória.
Pensei por um momento sobre essa loucura e convido você a refletir também.
A primeira pergunta que veio a minha mente foi: O que faria Deus no octógono? Será que Deus não tem o que fazer? Com milhões de pessoas morrendo de fome. Com inúmeros missionários sofrendo na janela 10/40. Deus iria ajudar alguém num octógono dar uma porrada mais forte? Deus ajudaria um brasileiro quebrar os dentes dum estadunidense?
A segunda questão que veio a minha mente foi: Que evangelho está sendo pregado para o nosso Brasil? O evangelho que vejo na boca dos crentes e na TV, não é o evangelho de Jesus e dos apóstolos. Nunca li sobre esse evangelho na Bíblia. Gostaria de saber qual Bíblia está sendo lida, pois não é mesma que li uma dúzia de vezes.
Uma turba de pastores orou, abençoou Bush e a guerra no Iraque. O Deus de Bush e destes pastores abençoa a destruição e a morte de milhares de inocentes. Esse não é o Deus que leio na Bíblia, que diz pela boca de Pedro que ainda não efetivou o arrebatamento porque não quer que nenhum dos homens se perca.
‘Pastores’ em Brasília convidaram fiéis a trazer para o templo caneta e ficha de inscrição em concurso, pois os mesmos fariam uma oração forte para os membros serem aprovados. ‘Evangélicas’ entram para o Big Brother e milhares de cristãos oram para que Ele honre e abençoe suas filhas. Na minha modesta opinião um cristão genuíno nem assiste Big Brother.

Que Deus abra nossos olhos. 








sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O último cristão


A questão é bem simples. A Bíblia é muito fácil de entender. Mas nós, cristãos, somos um bando de vigaristas trapaceiros. Fingimos que não somos capazes de entendê-la porque sabemos muito bem que no minuto em que compreendermos estaremos obrigados a agir em conformidade. Tome qualquer palavra do Novo Testamento e esqueça tudo a não ser o seu comprometimento de agir em conformidade com ela. “Meu Deus”, dirá você, “se eu fizer isso minha vida estará arruinada. Como vou progredir na vida?”.
Aqui jaz o verdadeiro lugar da erudição cristã. A erudição cristã é a prodigiosa invenção da igreja para defender-se da Bíblia; para assegurar que continuemos sendo bons cristãos sem que a Bíblia chegue perto demais. Ah, erudição sem preço! O que seria de nós sem você? Terrível coisa é cair nas mãos do Deus vivo. De fato, já é coisa terrível estar sozinho com o Novo Testamento.

Soren Kierkegaard

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Revolução cultural by Ed René Kivitz

Acabo de ouvir Zigmunt Bauman por 30 minutos, em entrevista concedida a Sílio Boccanera, para o Programa Milênio, da GloboNews.
Dos interessantes comentários a respeito do que Bauman chama de “revolução cultural”, tive alguns insights. Na verdade, dois. E ambos parafraseando o “penso, logo existo” de Descartes. Vivemos dias de “devo, logo existo”. Bauman disse que na sociedade capitalista quem não consome, não existe. Deixamos para trás a caderneta de poupança: “consiga o dinheiro e compre o que que quiser”, e migramos para o cartão de crédito: “compre o que quiser e depois consiga o dinheiro para pagar”. O resultado dessa mudança de paradigma de consumo é a dívida. Mudou o ditado. Antes se dizia “quem não deve, não teme”, hoje se diz “quem não deve, não existe”, pois quem não deve não interessa aos donos do crédito. E quem não interessa aos donos do crédito está alijado da sociedade.
Além de “devo, logo existo”, vivemos dias de “sou visto, logo existo”. Essa é a versão imposta pela tirania das redes sociais. Quem não tem twitterblog,facebook está fora do horizonte de convívio social, cada vez mais virtual. A vida on-line substituiu a vida off-line. Vai crescendo o número de pessoas que deixam de existir assim que fecham seus computadores e desligam seussmartphones. Aliás, o mundo vai se enchendo de gente que jamais fecha o computador ou desliga o smartphone. Apavoradas com a possibilidades de não serem vistas, isto é, não receber comentários e recados no facebook, e não ver sua coluna de mentions do twitter crescer, as pessoas temem deixar de existir.
E Bauman conclui como somente os sábios: “não tenho capacidade nem conhecimento para avaliar o que isso significa nem como vai ser o futuro”. A entrevista se encerra com Bauman encolhendo os ombros e virando os beiços como quem diz “e agora, José?”.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Invictus

Invictus
(Título Original: "Invictus")

Autor: William E Henley   
Tradutor: André C S Masini

Do fundo desta noite que persiste           
A me envolver em breu - eterno e espesso,      
A qualquer deus - se algum acaso existe,          
Por mi’alma insubjugável agradeço.

Nas garras do destino e seus estragos,   
Sob os golpes que o acaso atira e acerta,
Nunca me lamentei - e ainda trago         
Minha cabeça - embora em sangue - ereta.

Além deste oceano de lamúria,    
Somente o Horror das trevas se divisa; 
Porém o tempo, a consumir-se em fúria,           
Não me amedronta, nem me martiriza.

Por ser estreita a senda - eu não declino,          
Nem por pesada a mão que o mundo espalma; 
Eu sou dono e senhor de meu destino;   
Eu sou o comandante de minha alma.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A carroça vazia

Certa manhã o meu pai, muito sábio, convidou-me a dar um passeio no bosque.
Deteve-se subitamente numa clareira e perguntou-me:         
- Além dos pássaros, ouves mais alguma coisa?            
Apurei os ouvidos e respondi:       
Estou a ouvir o barulho de uma carroça.
- Isso mesmo, disse o meu pai, de uma carroça vazia.  
Perguntei-lhe:
- Como sabe que está vazia, se ainda a não vimos?       
- Ora, é fácil! Quanto mais vazia está a carroça, maior é o barulho que faz.
Cresci e hoje, já adulto, quando vejo uma pessoa a falar demais, aos gritos, tratando o próximo com absoluta falta de respeito, prepotente, interrompendo toda a gente, a querer demonstrar que só ele é dono da verdade, tenho a impressão de ouvir a voz do meu pai a dizer:    
- Quanto mais vazia a carroça, maior é o barulho que faz!